Vista aérea da destruição na aldeia Kateiokuare - FOTO: Raimundo Paccó/Agência Pública |
Por Allan Bordallo | Edição: Mariama Correia
O som de sirene toca no celular de um indígena da aldeia Kyikatejê (“povo do rio acima” na língua Timbira). É o sinal oficial para reunir a brigada indígena voluntária, composta por homens do povo Gavião das 30 aldeias instaladas no território. A reportagem da Agência Pública chegou ao território, que fica no município de Bom Jesus do Tocantins, no Pará, no dia 25 de setembro, quando os focos de incêndio haviam atingido seu ápice. Uma força-tarefa composta por integrantes do IBAMA, da Defesa Civil, do Exército Brasileiro e do Corpo de Bombeiros foi montada para combater as chamas, mas só atuou no território por cerca de uma semana, quando foi deslocada para outras áreas do estado. Restou aos indígenas a missão de combater o fogo.
Os incêndios na Terra Indígena (TI) Mãe Maria ocorrem todos os anos, a partir de julho, quando o tempo se torna mais seco. Mas a proporção que se viu em 2024 foi inédita: segundo dados do MapBiomas, em setembro foram queimados 7.691 hectares do território, um aumento de 6.707% em relação ao mesmo período do ano anterior. Considerando a série histórica, o grau de devastação em Mãe Maria foi proporcionalmente maior do que se viu na TI Apyterewa, em São Félix do Xingu (PA), que teve 47.545 hectares queimados em setembro, registrando aumento de 665% em relação ao mesmo período do ano anterior.
O cacique Katê Parkatejê, da aldeia Kateiokuare Parkatêjê, que faz parte do território, conta que se viam labaredas por cima de árvores de copas altas, como castanheiras. Em sua aldeia, o fogo atingiu áreas produtivas e ficou próximo de casas. Ele estima que mais de mil jabutis morreram com os incêndios, além de animais como preguiças, porcos e cachorros-do-mato. Na entrada da aldeia Kateiokuare, era possível ver o tronco de uma castanheira carbonizado. Essas árvores centenárias são símbolo da TI Mãe Maria.
A reportagem acompanhou o trabalho da brigada indígena no combate aos focos de incêndio, no dia 25 de setembro. Cerca de 30 homens participaram. Na caçamba de um caminhão estava a maioria desse efetivo. A área identificada ficava distante cerca de 40 quilômetros da aldeia. O ramal de acesso ao local onde foi identificado o foco de incêndio, com cerca de 30 quilômetros de extensão, foi aberto pela Vale, que executa obras para duplicar a ferrovia que atravessa o território. Durante o deslocamento, ao esperar o trem da mineradora passar, já era possível enxergar a fumaça subindo da floresta. Ao chegar em uma região aproximada dessa fumaça, Kokiniré, 37 anos, liderança da aldeia, subiu o drone e elegeu a rota de acesso.
Focos de incêndio registrados pelo drone de Kokiniré - FOTO: Raimundo Paccó/Agência Pública |
Por que isso importa?
- Sem apoio contínuo das autoridades ou equipamentos de proteção, moradores da Terra Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins, no Pará, estão enfrentando sozinhos os focos de incêndio na região, muito mais intensos este ano.
- A reportagem acompanhou um dia de trabalho da brigada voluntária indígena formada para combater o fogo que ameaça casas, biodiversidade e tradições.
A brigada voluntária dos Gavião não dispunha de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados para o combate ao fogo: cada homem portava um facão, para abrir caminhos entre troncos e galhos; alguns usavam máscaras de farmácia, balaclavas ou camisas enroladas sobre o rosto para tentar amenizar os efeitos da fumaça tóxica. Apenas um portava um soprador, equipamento utilizado em jardinagem e oficinas de carpintaria para remover objetos leves de superfícies. “Como não temos os EPIs, como bombas costais e abafadores, o que fazemos é o aceiro”, explica Jakuri Pepkrakte, filho que carrega o mesmo nome do cacique da aldeia Kyikatejê. O aceiro é uma espécie de cova rasa que serve para limitar a propagação do fogo. Para que funcione, é preciso remover todas as folhas, galhos e troncos que possam conduzir as chamas.
Ao entrar na área de floresta, os indígenas vão fazendo “pinicadas”, que é como chamam as marcações que fazem em árvores, e os cortes em troncos caídos, abrindo caminho para passagem do grupo. A estratégia deles é localizar o foco de incêndio e procurar circundá-lo com os aceiros.
“Ficamos com um pouco de medo no sexto dia de combate, porque a gente estava entrando em uma mata que a gente não utiliza muito. Mas o pessoal não reconheceu [a área] antes. O incêndio já estava pegando há muitos dias e tinha um pau queimando pela raiz que ninguém viu. A gente começou a fazer o aceiro e, do nada, o pau caiu em cima de onde o pessoal estava amolando a motosserra”, lembra Jakuri. Só não houve um prejuízo maior porque, ao ouvir os estalos, conseguiram sair do local onde o tronco caiu. A partir do episódio, as equipes passaram a ter até duas pessoas na linha de frente para fazer uma observação mais criteriosa enquanto o aceiro é feito. E, mesmo para os mais experientes, se ver cercado de fogo é um temor: um brigadista morreu carbonizado ao combater um incêndio na TI Capoto Jarina, em Mato Grosso.
A operação desse dia foi considerada satisfatória: embora o fogo não tenha sido totalmente debelado até a saída da equipe, os indígenas avaliaram que ele não se espalharia para além da intervenção feita. Ao cair da noite, a equipe voltou para a aldeia. No caminho para casa, a sensação era agridoce, junto ao orgulho por fazerem sua parte ao cuidar da terra que consideram mãe, pairava ao lado a frustração de saber que as áreas de floresta densa e acesso difícil sofriam com um fogo que a brigada não tinha chance de combater. O povo Gavião testemunhou neste ano uma destruição sem precedentes em sua reserva, e sabem que uma restauração é difícil.
“O fogo está causando algo em nossas vidas que vai ficar marcado. Quando a gente anda nos locais que já pegaram fogo, que a gente observa que era um local de caçada nossa, dá uma tristeza na gente. Porque, até aquilo ali voltar a ser o que era antes, vai demorar. Temos uma imagem de uma castanheira nova pegando fogo e só aguardando para cair no chão. É uma tristeza muito grande”, diz Jakuri, 37 anos, lembrando que os incêndios adiaram tradições das aldeias e a rotina dos moradores, com escolas sem aulas e plantações que deixaram de ser feitas.
Brigada voluntária indígena atualmente faz o trabalho que seria das forças de segurança - FOTO Raimundo Paccó/Agência Pública |
Brigada voluntária indígena
Quando as queimadas se intensificaram, foi necessário remover praticamente todos os moradores da aldeia Kateiokuare e instalá-los em hotéis nas cidades vizinhas de Bom Jesus do Tocantins e Marabá, distantes cerca de 30 e 40 quilômetros, respectivamente. O cacique Katê Parkatejê relata que muitos anciões apresentaram problemas respiratórios mesmo após a situação controlada, já que múltiplos focos de incêndio de menor porte mantinham a região cheia de fumaça. “Eu fiquei com a garganta inflamada e esta noite tive dor de cabeça por respirar fumaça a noite toda”, disse.
Desde a segunda quinzena de setembro, a força-tarefa de combate aos focos de incêndio foi deslocada para outras regiões do Pará, estado da Amazônia que registrou o maior número de focos de incêndio neste semestre. A aldeia Kyikatejê, a mais estruturada e numerosa das que estão instaladas na TI Mãe Maria, tornou-se uma espécie de centro de operações de combate aos focos de incêndio, hoje protagonizada apenas pela brigada voluntária indígena, que faz o trabalho que seria das forças de segurança.
Os homens da aldeia passaram a se reunir no pátio de onde funciona a escola para traçar a ordem do dia. Além do cacique Zeca Gavião, outras lideranças estratégicas surgiram para formular a operação de combate ao fogo: Jakuri Pepkrakte, Kokiniré Haraxare e Aiteti Gavião. Cada um deles tem uma função: Aiteti é bombeiro civil e recebe informações do Corpo de Bombeiros de Marabá sobre localizações estimadas de focos de incêndio; Kokiniré é estudante de artes visuais e colocou sua afinidade com o drone a serviço da aldeia: ao sobrevoar a mata com o aparelho, identifica o local do foco e, consequentemente, o ponto de entrada na mata; Jakuri é filho do cacique e fica responsável pela mobilização dos homens e lidera a entrada na área de floresta para dar início ao combate ao fogo.
“Antes o incêndio não se espalhava porque a mata estava úmida. Hoje está seca, devido a esse processo climático que está tendo no mundo, o impacto está nas florestas, que estão secas. Os rios todos secaram”, lamenta Jakuri. Ele explica que o rio que dá nome à TI, o Mãe Maria, costumava suportar o período seco com um volume bom de água até setembro. Mas neste ano está seco. “Eu tenho pesadelos que estou na mata combatendo o fogo”, comenta Kokiniré.
Segundo Nandiel Nascimento, coordenador municipal da Defesa Civil em Bom Jesus do Tocantins, as primeiras ocorrências de incêndios na TI Mãe Maria foram registradas entre 20 e 22 de julho. É da Defesa Civil o papel de articular uma operação entre os órgãos de forças maiores, como o Exército, Ministério Público Federal, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil Estadual, além de envolver a própria aldeia indígena, organizando e fornecendo apoio logístico e condições necessárias para a melhor atuação das equipes.
Incêndios na Terra Indígena Mãe Maria ocorrem todos os anos, porém neste ano vieram em proporção inédita - FOTO Raimundo Paccó/Agência Pública |
No primeiro momento, o combate aos incêndios se deu junto à Operação Fênix, do Corpo de Bombeiros, constituindo uma equipe de 15 homens para tentar controlar o fogo por via terrestre. Nascimento estima que a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros atuaram por dois meses, período em que foi possível detectar a ação humana na causa dos focos de incêndio, com derrubadas de árvores e abertura de clareiras na mata. A partir de setembro, a situação se intensificou e saiu de controle. Entre os dias 7 e 13 deste mês, as ocorrências aumentaram de forma muito rápida, e o combate terrestre se mostrou ineficaz na contenção do fogo. Casas foram queimadas em aldeias do povo Gavião e, àquela altura, Nascimento estima que 10% da floresta havia sido queimada. “O incêndio estava descontrolado e o município teve que decretar situação de emergência”, lembra.
A Defesa Civil nacional foi acionada juntamente com o Exército, a Força Nacional e o Ibama. O fogo passou a se espalhar por áreas de floresta densa, com grandes dificuldades de acesso, sendo necessário o apoio de aeronaves para combater a dispersão das chamas. O Exército apoiou a operação com equipamentos como tratores, caminhões, carros-pipa e reservatórios de água; o IBAMA enviou um efetivo de brigadistas e uma equipe de fiscalização para monitorar e ajudar a traçar uma estratégia para a operação, de modo a evitar danos ambientais mais profundos; o governo do Pará enviou o apoio do Grupamento Aéreo de Segurança Pública (Graesp) da Polícia Militar, utilizando aeronaves e direcionando bolsões de água nos pontos de difícil acesso. Juntou-se ainda à operação a Força Nacional.
No total, cerca de 60 homens das forças de segurança estiveram envolvidos no combate aos incêndios no período mais crítico. O número total de combatentes chegou a cerca de cem com o apoio dos indígenas que atuaram de forma voluntária. “A operação com este número de combatentes durou cerca de 15 dias”, estima Nascimento.
A ordem número um era evitar que o fogo chegasse perto dos aldeamentos, uma vez que as casas dos indígenas em sua maioria são de madeira e altamente inflamáveis. Os turnos de combate começavam cedo pela manhã e em vários dias entraram pela noite. Entre 10h e 15h, período em que o sol estava mais forte, os focos aumentavam tanto em número como em proporção, auxiliados pelo clima seco característico do segundo semestre na Amazônia. “Foi algo fora do normal, que nós não havíamos tido experiência no município de Bom Jesus”, disse Nascimento. Foi possível proteger os aldeamentos, salvaguardar a vida dos indígenas aldeados e minimizar os estragos. Porém, o fogo não foi debelado.
Foi a natureza que remediou os problemas dos Gavião, quando não restava mais saída: no início do mês de outubro, as chuvas voltaram e apagaram o fogo que consumiu cerca de 10% do território.
Cacique Katê Parkatejê na entrada de uma das aldeias onde passa o linhão da Eletronorte - FOTO: Raimundo Paccó/Agência Pública |
TI é atravessada por linha de transmissão
Segundo um estudo realizado pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 99% dos incêndios florestais são causados por ação humana e em apenas 1% dos casos o fogo acontece por razões naturais, como a incidência de raios em áreas de mata, por exemplo. A Polícia Federal tem 101 inquéritos instaurados para apurar incêndios criminosos no Brasil, mas nenhum deles investiga os incêndios que aconteceram na TI Mãe Maria.
A Terra Indígena Mãe Maria é atravessada de ponta a ponta por uma linha de transmissão de energia elétrica da Eletronorte, na mesma extensão do trecho da rodovia Transamazônica, que corta o território e serve como via de acesso às aldeias. Próximo ao limite sul da TI passa também a ferrovia da Vale, que escoa o minério produzido nas minas da região sudeste do Pará. As torres da Eletronorte ficam próximas às entradas das aldeias, em uma área onde há ocupação humana e de vegetação rasteira.
Segundo o cacique Katê Parkatejê, seria prática de uma empresa terceirizada da Eletronorte limpar a vegetação rasteira que cresce junto às torres de energia para facilitar a manutenção, em vez de roçar. “Se você andar por toda a área, você vai ver que o fogo está centralizado debaixo do linhão. Por que isso? Só que o fogo nunca entrava na aldeia e nesse ano entrou”, diz o cacique. A assessoria da Eletronorte enviou nota à reportagem, na qual afirma que a “Eletrobras Eletronorte e todas as demais empresas Eletrobras não fazem uso de fogo para supressão de vegetação, fazendo essa manutenção sempre de forma mecanizada com tratores de roda e demais equipamentos. Importante alertar que ações com fogo poderiam causar, inclusive, severos danos ao sistema”.
Castanheira carbonizada na entrada da aldeia de Katê Parkatejê - FOTO Raimundo Paccó/Agência Pública |
O Ministério dos Povos Indígenas enviou uma nota informando que “atua conjuntamente com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e demais órgãos governamentais no monitoramento, prevenção e combate aos incêndios florestais nas Terras Indígenas”. E também que “a atual temporada de incêndios é uma das mais severas já registradas na história do país e pode se agravar, devido a ondas de calor e baixa umidade” e que “tem procurado garantir que todos os recursos disponíveis sejam enviados para a proteção dos territórios indígenas”. O MPI não respondeu, entretanto, se participa ou colabora com investigações para encontrar os causadores desses incêndios, se há algum planejamento para restaurar as áreas degradadas e também para prevenir ocorrências futuras.
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima também enviou nota à reportagem, em que frisa que “o Brasil passa pela maior estiagem dos últimos 75 anos, o que agrava a situação dos incêndios florestais”. Segundo a nota, foi instituída, em junho, uma sala de situação para ações de prevenção e controle de incêndios e secas, liderada pela Casa Civil e com integrantes dos Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Saúde, Defesa, Justiça e Segurança Pública, Povos Indígenas e Integração e Desenvolvimento Regional.
Ainda segundo a nota, em setembro, foi assinada uma medida provisória que autoriza crédito de R$ 514 milhões para o combate aos incêndios na Amazônia, que inclui R$ 114 milhões para o MMA.
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